Vol. XIV: Vitrais 95 - jul 2021  A Revista da ABRT Associação Brasileira Ramain-Thiers

ISSN 2317-0719

VITRAIS
Vol. XIV: Vitrais 95 - jul 2021

 

Editorial

Notícias

Literatura

Rubens Alves

 

Artigos

Marina Aparecida Fraga Stremlow

Elaine Thiers

 

Reflexão

Cora Coralina

 

Como publicar seus artigos

Contato com Elisabete Cerqueira

elisabeteccerqueira@yahoo.com.br


Números anteriores

 

 

Vol. l:  

Vitrais 56 jun 2007

Vitrais 57 – fev 2008

Vitrais 58 – nov 2008  
Vol. ll:  

Vitrais 59 – mar 2009

Vitrais 60 – jul 2009

Vitrais 61 – dez 2009

 

Vol. lll:

 

Vitrais 62 mar 2010

Vitrais 63 - jul 2010

Vitrais 64 dez 2010

 

Vol. IV:  
Vitrais 65 mai 2011 Vitrais 66 - set 2011
Vol. V:  
Vitrais 67 mar 2012

Vitrais 68 - ago 2012

Vitrais 69 dez 2012  
Vol. VI:  
Vitrais 70 mar 2013 Vitrais 71 – jul 2013
Vitrais 72 – out 2013 Vitrais 73 – dez 2013
Vol. VII:  
Vitrais 74 – mai 2014 Vitrais 75 - ago 2014
Vitrais 76 – nov 2014  
Vol. VIII:  
Vitrais 77 – jun 2015

Vitrais 78 -  nov 2015

Vol. IX:  
Vitrais 79 – mar 2016 Vitrais 80 -  jun  2016
Vitrais 81   out  2016

Vitrais 82 -  dez  2016

Vol. X:  
Vitrais 83  abr  2017 Vitrais 84 -  set  2017
Vol. XI:  
Vitrais 85 – jan 2018 Vitrais 86 – mai 2018
Vitrais 87 – jul 2018 Vitrais 88 – dez 2018
Vol. XII:  
Vitrais 89 – abr 2019 Vitais 90 - ago 2019
Vol. XIII:  
Vitrais 91 – jun 2020 Vitrais 92 – set 2020
Vitrais 93 – dez 2020  
Vol. XIV  
Vitrais 94 – mar 2021  

 

                   

 

Literatura

 

O feitiço de Áquila

por: Rubens Alves

 

O nome é O feitiço de Áquila. Faz muito tempo que o vi. Mas não me esqueci.

Ele, guerreiro, cavalgava um cavalo negro. Seus olhos eram tranquilos, seu rosto era triste, seus cabelos eram dourados como a luz do Sol, e a sua voz só se ouvia depois de longos silêncios.

Ela era diáfana como a Lua, seus cabelos eram negros como a noite, e a sua voz era mansa como a luz das estrelas.

Eles muito se amavam. Seu amor era belo

Vivia naquela terra um feiticeiro que manipulava os poderes de mal. Ele a viu e se apaixonou por ela. Quis tê-la para si mesmo. Mas ela amava o guerreiro e se escondeu dos olhos do feiticeiro. Este enfurecido, lançou sobre os amantes um feitiço: estariam condenados, pelo resto dos seus dias, a nunca se tocarem. A mulher seria como a Lua. Só apareceria à noite, depois do pôr do Sol. Durante o dia ela seria um falcão caçador, com bico e garras de rapina. O guerreiro seria como o Sol. Só apareceria durante o dia, depois do nascer do Sol. Durante a noite ele seria um lobo negro caçador.

E assim aconteceu. Durante o dia o guerreiro cavalgava o seu cavalo negro levando no ombro sua amada, em forma de falcão. Vez por outra o falcão alçava voo, subia até as alturas, e de repente, com um pio estridente, mergulhava como uma flecha para pegar alguma presa. Durante a noite a mulher ficava ao lado do seu amado, lobo negro, que se deitava aos seus pés e lambia suas mãos. Vez por outra ele se levantava e entrava sozinho na floresta escura, para viver a sua vida de lobo.

Mas havia um breve momento encantado quando eles quase se tocavam. Ao pôr do Sol, quando a luz do dia se misturava com o escuro da noite, era o momento mágico: o falcão voltava a ser mulher e o guerreiro se transformava em lobo. Ao nascer do Sol, quando o escuro da noite se misturava com a luz do dia, o lobo voltava a ser o guerreiro e a mulher se transformava em falcão. Nesse brevíssimo momento os dois apareciam um ao outro como sempre tinham sido e eles viviam, então, por um segundo, a beleza do seu amor. Suas mãos se estendiam, uma querendo tocar a outra – mas o toque era impossível. Antes que as mãos se tocassem a metamorfose acontecia e as imagens fugiam.

O guerreiro amava o falcão. Ele sabia que dentro do falcão vivia sua amada de voz mansa. Mas vivia encantada, adormecida. Dela, o que ele tinha era apenas a ave muda, mergulhada no silêncio do seu mistério. Ele acariciava suas penas – mas um falcão não é uma mulher. O falcão não era sua amada. Ele a carregava na pequena esperança do momento encantado e na grande esperança de que, um dia, o feitiço fosse quebrado.

A mulher amava o lobo. Ela sabia que dentro do lobo vivia o guerreiro de olhos profundos que ela amava. Mas ele vivia encantado, adormecido. Dele ela só tinha os olhos mergulhados no silêncio do seu esquecimento. Ela acariciava o seu pelo negro – mas um lobo não é homem. O lobo não era o guerreiro que ela amava. Ela o acariciava na pequena esperança de que, um dia, o feitiço fosse quebrado.

O amor pode muito. Ele é divino. Pode mais que todos os feitiços. E aconteceu que, um dia, depois de uma luta horrenda, o feiticeiro foi morto e o feitiço foi quebrado. E o guerreiro voltou a ser o guerreiro que sempre fora, e a mulher voltou a ser mulher que sempre fora. E as mãos puderam se tocar e tudo foi alegria e eles se casaram e viveram felizes para sempre...

O filme é lindo. Minha experiência mais funda, vendo O feitiço de Áquila, foia debeleza. E a beleza tem um efeito embriagante. Quando a alma é tocada por ela, a cabeça não faz perguntas. Tudo é êxtase, encantamento. Mas, passado o êxtase da beleza – pois que ele não pode durar para sempre-, minha cabeça foi possuída pela curiosidade psicanalítica. E começou a perguntar: “Essa beleza, de que ferida nasceu? ”. Pois a beleza sempre nasce de feridas. As feridas a produzem para que a sua dor seja suportável.

Ela nasceu da dor amor. Aquele que escreveu a estória sofria. Sofria porque o seu amor era igual àquele momento quando o Sol nascia e quando o Sol se punha: infinitamente belo, insuportavelmente efêmero, Efêmero porque logo a mulher amada se transformava em falcão. Efêmero porque logo o homem amado se transformava em lobo. Mas é precisamente isto que os apaixonados não suportam: o efêmero. A paixão só se contenta com eterno.

As escolhas dos símbolos não são gratuitas. Na alma nada é gratuito. Tudo faz sentido. O autor poderia ter escolhido uma pomba, ave mansa, que se parecia com a mulher amada. Poderia ter escolhido um unicórnio branco, animal manso com um coração apaixonado. Mas não. Escolheu um falcão e um lobo, animais selvagens, ferozes, matadores. Que coisa mais estranha, que aquele momento efêmero de amor manso fosse logo destruído pelo selvagem que mata!

Ah! Isso não era possível! A vida não pode ser assim! Como explicarque o amor, tão forte, seja assim tão frágil? Como explicar a força do lobo e do falcão? Como explicar o poder da morte? (O amor está sempre em luta com a morte!)Esse é, talvez, o mistério maior da condição humana. Freud tentou decifrá-lo e fracassou. Como explicar a metamorfose das imagens? De repente o amante de cabelos dourados como o Sol se transforma no lobo negro como a noite. De repente a voz da amante, suave como a luz das estrelas, se transforma no pio do falcão, perfurante como faca. Ah! Como explicar isto, que o tempo do amor seja tão curto e o tempo do selvagem seja tão longo? O amor tem de ser mais forte que a morte. O amor tem de ter um destino de felicidade permanente.

Um amor assim, tão belo e tão efêmero, é trágico. Mas o amor não suporta um final trágico. E aí entra em cena o escritor, que escreve para dar um final feliz à tragédia. Tudo só pode ser produto da feitiçaria. A feitiçaria entra na estória para salvar o amor, para dizer que o lobo e o falcão são intrusos, que eles não pertencem à estória, que eles foram ali colocados por um feiticeiro malvado, que eles terão de ir embora. Se não fosse o feitiço do bruxo os amantes estariam juntos para sempre! O amor -  no seu momento belo e efêmero – vive da esperança “de tudo se arranjar”. A estória tem de ter um final feliz. O amor quer chegar à paz.

A estória, assim, se divide em três partes. A primeira conta do momento belo do amor e da sua realidade efêmera, logo invadida pelo lobo e pelo falcão – selvagens. Essa parte da estória descreve a realidade. A segunda parte é uma explicação, uma hipótese para desvendar o mistério: que o selvagem invada o amor – isso é obra de feitiçaria. Na terceira parte se encontra a solução sonhada: ao final, será o amor sozinho, sem lobos e falcões, e o momento efêmero – infinito enquanto dura! – se transformará num abraço eterno. Esse final feliz é literário, palavras – mentiroso.

Na estória do amor não há um final feliz. O casamento não é eternalização do amor. A paz nunca é atingida. O lobo e o falcão não são criações da feitiçaria. Todos somos amantes e lobos, amantes e falcões. Lobos e falcões jamais desaparecem. Eles são eternos. Eles moram dentro de nós.

Será possível, então, um triunfo do amor? Sim. Mas ele não se encontra ao final do caminho. Ele se encontra no meio do caminho: não na partida, não na chegada, mas na travessia. O amor triunfa quando ele é capaz de abraçar o lobo e o falcão. Quando o amor abraça o lobo e o falcão eles deixam de ser selvagens destruidores e passam a ser – se não amigos – pelo menos companheiros. Parafraseando Rilke: “ Conter o selvagem, o selvagem inteiro, sem perder a doçura – isso é inefável! ”.

 Mas pode ser que o amor se vá e que o momento efêmero não mais apareça quando o Sol nasce e quando o Sol se põe. Então o lobo se revela como fera e o falcão como ave de rapina...

Quando isso acontece é hora de dizer adeus...

 

REFERÊNCIAS

Alves, Rubem. Palavras para desatar nós. Campinas, SP: Papirus,2011. P. 13.