Vol. XV: Vitrais 94 - mar 20201A Revista da ABRT Associação Brasileira Ramain-Thiers

ISSN 2317-0719

VITRAIS
Vol. XV: Vitrais 94 - mar 2021

 

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Artigo

 

Infância e atualidade; causas internas e causas externas

por: Contardo Calligaris

Doutor em Psicologia. Psicanalista. Ensaísta.

 

 

Cara amiga,

Pelo que você me conta, seus primeiros pacientes falam sobretudo do que lhes acontece hoje. Queixam-se das dores do dia e eventualmente, da sensação de uma certa falta de futuro. É você, com suas perguntas, que tenta evocar o passado, especialmente a infância. Aliás, de vez em quando, leva uma bronca, como aquela paciente que lhe disse: “Olhe, eu não estou aqui para falar de meus pais, de meus irmãos e de meus primeiros anos no interior, meu problema é agora”.

Claro, você não se deixa abalar e segue perguntando. Afinal, passou anos de formação aprendendo que, para que a cura aconteça, é preciso tocar na raiz das dores de seus pacientes e que essa raiz, de uma maneira ou de outra, está na infância. Mesmo assim, você se pergunta: deveríamos sempre procurar na infância e só na infância as razões do sofrimento psíquico, mesmo que nosso paciente afirme o contrário? É certo insistir na evocação do passado diante de uma catástrofe atual? Às vezes, você observa, “sinto-me um pouco idiota: ‘Perdi o emprego e estou desesperado’, anuncia o paciente, e eu faço o que? Pergunto-lhe se lembra de quando o filho dos vizinhos roubou o seu carrinho de madeira? O que você acha? ”.

Na verdade, não faço uma grande diferença entre acontecimentos da infância e acontecimentos da vida adulta (também não sei muito bem quando começa a vida adulta). Explico melhor: não estou nada certo de que os acontecimentos da infância sejam de uma natureza diferente do que nos acontece hoje. Tampouco sei se é verdade que pela receptividade de nossos primeiros anos, eles nos marcam com um ferro mais quente, que deixaria vestígios para a vida inteira.

Mas uma coisa sei: qualquer evento nos marca e nos transforma só na repetição ou, melhor dito, num segundo momento, em que ele é evocado, retomado, revivido. Por exemplo (fictício e obviamente simplificado), se eu fui abandonado na porta da igreja quando nenê, esse evento por si só não tem uma implicação necessária em minha vida; mas ele se torna decisivo no dia em que, aos quinze anos, minha namorada some de uma festa para onde fomos juntos de mãos dadas. É esse segundo evento que dá destaque (consciente ou inconsciente) ao primeiro. É a partir desse segundo evento que, eventualmente, começarei a viver a angústia desamparada cada vez que estiver sozinho ou (também possível) a não tolerar a presença de ninguém o meu lado, pois “sei” que todos são traidores que abandonam.

O funcionamento do trauma propriamente dito é o melhor exemplo. Você sabe que a categoria de “transtornos de estresse pós-traumático por psiquiatras americanos que trabalhavam com veteranos da Guerra do Vietnã. Eles contaram duas coisas: 1) a Guerra do Vietnã produziu umapercentagem de veteranos traumatizados muito maior do que qualquer outra guerra americana (Segunda Guerra Mundial, Guerra da Coréia); 2) os sintomas de estresse pós-traumáticos não apareciam logo após as situações extremas de batalha; eles apareciam quase sempre quando o veterano terminava seu tempo de serviço, voltava ao país e deixava o exército.

Concluíram assim: o caráter traumático de um acontecimento não depende de alguma qualidade específica da experiência vivida, mas é um efeito de como, mais tarde, essa experiência pode ou não integrar uma história que faça sentido para o sujeito. Os veteranos da Guerra da Coréia e ainda mais os da Segunda Guerra viveram situações tão horríveis quanto os combatentes do Vietnã, mas, ao voltar para casa, eles encontraram multidões agitando bandeirinhas de boas-vindas. Os veteranos do Vietnã voltaram para um país indignado e envergonhado com uma guerra que parecia não ter sentido para ninguém.

Um trauma é isso: um evento, mais ou menos difícil, que, num segundo momento, não consegue ser integrado na história do sujeito.

Outro exemplo. Será que um tapa na cara de uma criança constitui um trauma ou não? Não é possível responder; ainda é preciso saber se, mais tarde, o sujeito esbofeteado encontrará ou não argumentos para dar algum sentido ao dito tapa. Os sentidos que podem ser encontrados a posteriori são muitos; o nosso sujeito, num segundo momento, poderá entender o tapa como a expressão de uma autêntica vontade pedagógica de pais amorosos ou como a manifestação de uma irritação que não tinhanada a ver com ele ou do desespero de quem não consegue ser pai ou mãe. O tapa será propriamente um trauma caso o sujeito, num segundo momento, não encontre sentido algum para a violência que o golpeou.

Mas não é a definição do trauma que nos importa. Com esses exemplos, queria apenas lhe mostrar que os fatos de nossas vidas agem em nós pela história em que se integram ou, melhor, pela história em que conseguimos ou não integrá-los.

Não que a vida seja um continuum. Ao contrário, não é; reconstruir (melhor dito, inventar) um sentido que ligue o presente ao passado é uma obra incessante, que nos oferece um conforto necessário, nos dá sensação de que atos e fatos se inserem numa história, num conjunto, que somos nós. Aliás, reinterpretar o passado, descobrir (ou inventar) novos sentidos para o que aconteceu é quase sempre uma maneira de mudar nosso presente. Pois, no fim dessa empreitada, sendo o resultado de uma narração diferente, somos mesmo diferentes.

Qualquer cura tem duas faces: uma, digamos assim, demolidora, que desfaz as certezas cristalizadas da história que nos acua em sintomas que, à vista de nosso passado, parecem inelutáveis, e outra, construtiva, que nos permite reinventar ou modificar um pouco a história da qual seríamos o fruto.

 Talvez tenha conseguido explicar um pouco por que a infância se torna importante no nosso trabalho. Não é porque os eventos da infância seriam mais marcantes do que os de hoje, mas porque os eventos de hoje tornam relevância e sentido a partir dos de nosso passado e, portanto, de nossa infância.

Agora, cuidado: um dos traços evidentes de nossos tempos é que o sentido do presente é procurado muito mais no futuro do que no passado. Era inevitável: a modernidade define o sujeito não por sua herança, mas por suas potencialidades. À primeira vista, é uma libertação: o passado não nos define mais com a mesma veemência, os anseios de mudança podem salvar meu dia. De fato, a libertação é apenas aparente: o futuro projeta sobre o presente uma sombra tão escura quanto a que antigamente era projetada pelo passado.

Parece que saímos de uma cultura em que o passado nos impedia de inventar o presente para entrar numa cultura em que o futuro nos impede de saborear o que estamos vivendo.

 É frequente, por exemplo, que alguém recuse um namoro porque “não sei se vai dar certo”. O prazer que uma relação proporciona é preterido porque duvidamos de seu futuro. Mais um exemplo, que conheço bem, por tê-lo encontrado em muito pacientes e por ter passado perto de vivê-lo. Durante quase dez anos, vivi entre Nova York e São Paulo. O grande prazer de viver em duas metrópoles entre as mais interessantes do mundo podia ser facilmente estragado pela incumbência da escolha futura do lugar onde fincaria pé na hora em que parasse de viajar.

Enfim, para entender como e quanto o futuro pode parasitar o presente, pergunte aos adolescentes. Em geral, eles não aguentam mais ser considerados sempre promessas de um futuro e vivem na impressão de que os adultos que mais os amam desconsideram o presente de suas vidas.

Duas razões, então, para que façamos o esforço de evocar o passado, em cada cura: para reinventar o sentido de uma história e para amenizar o peso do futuro, devolvendo assim, quem sabe, seu justo lugar ao presente de nossas vidas.

Você se queixa também de que alguns de seus pacientes parecem considerar que todos os seus males são, por assim dizer, resultados de causas externas: perderam o emprego e não encontram um que os satisfaça; foram abandonados por suas esposas e esposos; carregam uma doença que os ameaça e os assola. Enfim, eles lhe propõem o catálogo de todos os vasos de flores que um ser humano pode receber na cabeça ao sair de casa.

Claro, você me escreve, deve ser possível ajudá-los a aguentar melhor os golpes de destino e mesmo a reagir com mais eficácia, mas, no fundo, ao escutá-los, parece que sofrem só da adversidade do mundo. Às vezes, você acha que sua intervenção seria mais eficaz se você se transformasse em casamenteira, agência de emprego ou orientadora profissional. Chega a suspeitar que suas perguntas sejam desonestas, como se elas supusessemsempre a responsabilidade de seu paciente e como se essa suposição tivesse, como finalidade, a de convencer seupaciente da utilidade de recorrer aos seus serviços.

Essa distinção entre eventos externos e eventos internos, culpa da gente e culpa dos outros, alimenta um conflito infindável entre sociólogos e psicoterapeutas ou, às vezes, entre psicólogos clínicos. No ringue, parece que se enfrentam dois lutadores; de um lado, os que acham que a personalidade e os sintomas são frutos da cultura, do emaranhado das relações e dos acidentes da vida, do outro, os que acham que personalidade e sintomas são frutos da dinâmica interna de impulsões, desejos e censuras que se originariam no fundo singular da alma.

É um enfrentamento idiota; mais um na lista dos conflitos inúteis.

Primeiro, FernandoPessoa (em muitas ocasiões, os poetas são mais sábios do que os psicanalistas) já sabia que “o mundo exterior é uma realidade interior”. Segundo, como disse uma vez Lacan, o inconsciente não é nem individual nem coletivo, ele é “o” coletivo mesmo. Em outras palavras, nosso lugar único e singular é como o assento que nos é reservado numa sala de teatro; ele é nosso, está escrito no ingresso, mas ele é o lugar imposto pela distribuição dos outros na mesma sala; às vezes, há lugares sobrando e, no meio do espetáculo, dá para mudar e se aproximar do palco, mas será um pouco de penetra; nosso lugar designado é o que recebemos na compra do bilhete. Será que faz sentido perguntar-se se é um lugar individual o coletivo, posto que é o nosso, mas é decidido pela distribuição na sala dos que assistem ao espetáculo junto com a gente?

Acrescente a isso a constatação de que, uma vez sentados, o que comandará nossas emoções e nossa participação na peça, sim, nossa singularidade, mas uma singularidade feita de valores, obrigações, censuras, repressões e desejos que são os mesmos que agitam os outros espectadores, ao quais aplaudem, riem, choram ou vaiam conosco.

Também considere (esse é um conselho clínico) que existe uma ampla gama de transformações da personalidade que são propriamente ditadas pela situação coletiva na qual um sujeito se encontra;

Por exemplo, a mudança de cultura que acontece numamigração, acarreta verdadeiras mudanças subjetivas.

Mesmo benigno e muito frequente é o caso dos sujeitos que sucumbem ao grupo.

É bem conhecido o exemplo de homens comuns, de todos os horizontes da vida, que se transformaram em torturadores ou assassinos de massa nas burocracias totalitárias, sem que nada na singularidade de suas histórias, sintomas ou fantasias os predispusesse a essas tarefas. Desistiram de seus valores, de seus desejos, de suas representações singulares e ganharam em troca o conforto de uma vida regrada por uma só exigência: a de ser um membro funcional do grupo, um bom funcionário.

A gangue de adolescentes produz resultados parecidos, transformando facilmente cordeiros em assassinos. Nela, cada um suspende radicalmente sua existência à aprovação dos outros.

São casos aparentemente extremos pelas consequências que acarretam. Mas, não esqueça que somos todos membros de algum grupo burocrático, assim como somos todos suficientemente narcisistas para deixar ao olhar dos outros o cuidado de decidir quem somos.

Enfim, psicólogo social e psicoterapeuta não têm o mesmo por que brigar. O psicólogo social pode não ser psicoterapeuta; o psicoterapeuta não pode ser de alguma forma, psicólogo social. Pois, se ele entender e abordar seu paciente como se fosse um Robson Crusoé vivendo desde sempre na ilha deserta e sem nunca encontrar Sexta-Feira, o terapeuta se parecerá com um físico de antes da física moderna. Sabe, aqueles que achavam que os corpos caem por uma propriedade interna, porque são obstinadamente pesados. Parece que, desde então, descobriu-se que os corpos caem porque há muitos corpos de tamanhos diferentes, e eles se atraem.

Abç.

 

Referências

 

CALLIGARIS, Contardo.Cartas a um jovem terapeuta: reflexões para psicoterapeutas, aspirantes e jovens. Rio de Janeiro: Elsevier, 2008. P. 133/144.