Vol. XIV: Vitrais 96 - set 2021 

A Revista da ABRT Associação Brasileira Ramain-Thiers

ISSN 2317-0719

VITRAIS
Vol. XIV: Vitrais 96 - set 2021

 

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Artigo 1

 

Criatividade e terapia

por: Julio de Mello Filho

Psicanalista. Psicoterapeuta Analítico de Grupo.

 

Quem, dentre nós, estará a altura

da criatividade dos seus sonhos?

                          Joyce Mc Dougall

 

O objeto transicional, o espaço potencial e o viver compartilhado nos colocam em contato direto com o problema da criatividade, que foi uma das últimas questões estudadas por Winnicott. Naturalmente, por ser o tema da criatividade muito amplo, me reportarei aqui, basicamente, à sua relação com o processo terapêutico.

Winnicott ampliou muito a visão da criatividade de Freud relacionada, fundamentalmente, com a sublimação, como também a visão de Melanie Klein, que a encarou sobretudo como uma consequência dos processos de reparação. Winnicott ligou a criatividade diretamente com o próprio viver criativo, a partir da ilusão inicial da criança, fomentada pela mãe, de que ela concebe e cria o mundo. A partir daí, passando pela descoberta do objeto transicional e da capacidade de brincar, alcançaremos o viver criativo, seja a criatividade interna e pessoal, seja uma “criatividade compartilhada” com os outros, com o mundo. Deste modo, a criatividade passa a ser um dos instrumentos mesmo tempo, um dos objetivos – talvez o maior. [De tal modo Winnicott quis relacionar a criatividade com a vida e com o viver que deu mesmo o exemplo de um oligofrênico que consegue tirar o prazer do simples ato de respirar como no caso de criatividade.]

A possibilidade de vivenciar o seio damãe como algo concebido por si dá a criança a perspectiva de descobrir todas as coisas do mundo de forma criativa, à medida que são percebidas f pelos órgãos dos sentidos. Desse modo se inicia um viver criativo acompanhado de um intenso prazer de entrar em contato com objetos da realidade externa e também com os processos econteúdosda realidade interna. Posteriormente, com a aquisição do princípio da realidade, vem o reconhecimento paulatino de que o mundo existe independentemente de nós. Todavia, a perspectiva de interagir com seres e objetos na área do espaço potencial mantém esta possibilidade de permanecer vivendo de modo fértil e criativo. Por outro lado, para Winnicott, a manutenção da crença da nossa posse sobre a realidade externa permanece num grau maior ou menor em cada um de nós, e é um dos elementos fundamentais dos estados esquizóides.

Numa de suas visões mais originais, Winnicott relacionou a criatividade aos elementos femininos e masculinos da personalidade. A criatividade que deriva do elemento feminino está relacionada com a identidade e com o sentimento de ser, enquanto que a criatividade relacionada com o elemento masculino se liga ao impulso dirigidos a objetos a ao ato e sentimento de fazer. Neste famoso trabalho – “A Criatividade e suas Origens”– ele nos diz que estes elementos existem nos dois sexos, e podem se apresentar livres e integrados ao funcionamento psíquico saudável ou dissociados e ocultos, predispondo ao funcionamento psíquico patológico (problemas na área das identificações, escolha e constância de objeto, papéis sexuais e culturais, liberdade de ser e agirdiante do sexo,etc.) Terminaeste trabalho com a frase: “Após ser-fazere deixar-se fazer. Mas, antes de tudo, ser.”

Criação, escreveu Winnicott, não é apenas uma obra de arte, é também um jardim, um penteado, um modo de preparar a comida. Nossas interpretações são, portanto, produto de nossa criatividade – a não serque estejamos despojados de qualquer originalidade – assim como o modo que arrumamos nosso setting, como já foi anteriormente comentado. Por isso, as boas interpretações têm, muitas vezes, algo poético. Ao longo dos relatos clínicos de Winnicott, temos vários exemplos disto.Nosso objetivomaior – e esta foi uma das últimas lições que ele nos deu – é, todavia, possibilitarmos ao paciente estimular ou mesmo despertar a sua criatividade. Naquilo que ele nos narra, no modo como ele nos narra, e nas conclusões –insigths – a que consegue chegar. As melhores interpretações são, em última instância, aquelas que ele mesmo dá. E o terapeuta atua, fundamentalmente, como objeto facilitador, possibilitando, com seus espelhamentos e intervenções, com a atmosfera de holding, que o próprio paciente possa enfeixar a Gestalt, dar o passo final naquela elaboração em “transicionalidade”.

Tudo isso nos remeteao que escreveu André Green,aoelaborar sobre o próprio trabalho de Winnicott: o objetivo da análise é a construção do objeto analítico, uma construção ao mesmo tempodo paciente e do analista. O resultado da análise e a própria análise só ganham sentido, desta forma, quando algo se cria e se produz através da fecundidade de uma relação. Em última instância, é irrelevantequemcontribuiu mais, ou quem deu o passo final na direção do sentimento – conhecimento gerado. Ele é sempre produto de uma interação, quando existe esta possibilidade e este tipo de funcionamento de uma dupla. Se o paciente puder dar o chute final, fazer gol, melhor, nos mostrou Winnicott.

 Estes fatos são fundamentais em qualquer análise, porém adquirem uma importância crucial, para usar uma palavra muito ao gosto de Winnicott, no tratamento dos chamados casos difíceis em que há, geralmente, grandes danos ao self, importantes lesões de autoestima como nos mostraa Psicologia do Self, lesões na capacidade de ser, na terminologia de Winnicott. Nestes casos, a própria capacidade do analista de criar, de interpretar, se faz de modo isolado, sem a participação do paciente, pode ser sentida pelo menos como algo que o isola, diminui, motivo mesmo de inveja. E trata-se, muitas vezes, de falta de tato, de sensibilidade, de empatia do terapeuta, que não percebe que, ao agir assim, comporta-se como a mãe ou pai que se põe a falar e ensinar sozinho e deixa o filho para trás, sentindo-se abandonado, perplexo, não participante.

Tive uma paciente de meia-idade, fundamentalmente narcísica, que veio à análise com muitas resistências, indicada por um clínico, por conta de intensas dores musculares. Contou-me que sua mãe era uma mulher fria, que mal botava no colo, nunca brincara consigo e tinha nítidas preferências por uma irmã. O pai sempre foi uma presença constante, e da convivência com ele vinham suas mais agradáveis recordações. Acompanhava-o no trato do jardim e da horta da casa em que moravam onde, juntos, semeavam a terra, plantavam e colhiam legumes e vegetais. Também cuidava junto com o pai de uma criação de porquinhos-da-índia, e me descreveu a alegria de ver os filhos nascerem. Só mais tarde percebeu o lado patriarcal do pai, soube de suas amantes e descobriu que ele não admitia que discordassem dele. Esse relato forneceu-me as pistas – que captei de modo inconsciente, sobretudo – para perceber a única forma como seria possível o caminhar de nossa relação. Assim foi todo o período inicial de sua análise, em que ajudava a reconstruir seu passado, desde que ela fizesse as descobertas, fosse percebendo aqui e ali e acrescentando novos dados. Desse modo, a ajudava a reconquistar seu sentimento de onipotência de descobrir o mundo, e permitia que revivesse a fase do grandioso self, construída através da relação com o pai, processos muito comprometidos pela má relação com a mãe e pela decepção posterior com a pessoa do pai. Ao mesmo tempo, possibilitava uma experiência de uma relação criativa e compartilhada, a uma pessoa extremamente arredia e desconfiada diante de todo e qualquer relacionamento, que realizava todas as suas conquistas só, como o Condor dos Andes, na sua própria comparação.

No mais das vezes, a criatividade é um processo em desenvolvimento durante uma análise, que atinge seu apogeu no final. Torna-se um dos elementos fundamentais como registro do evoluir de um processo, principalmente naqueles pacientes em que há um bloqueio do viver criativo ou da possibilidade de usufruir um viver cultural. Aliás, para Winnicott, a ausência de vida cultural é, por sisó, um indício de que o paciente precisa de uma análise especial.

As outras condições que ele enumerou, neste sentido, foram: a presença de uma figura parental muito enferma, dominando a vida do paciente; um temos da loucura como o sintoma principal; a presença de um falso self bem sucedido, que precisa ser demolido durante a análise; a presença de uma tendência antissocial.

O terapeuta precisa estar inconscientemente atento para as várias possibilidades do paciente expressar a sua criatividade em cada fase da análise, na forma como descobre e transforma o processo analítico, no modo como se veste e se apresenta, no momento em que verdadeiramente sente que um filho é uma real criação dele. O retrato de um filho, a escolha de determinado presente, costumam ser manifestações muito diretas da criatividade que o paciente nos traz, além de qualquer outro conteúdo simbólico que possam encerrar. Interpretar de imediato a entrega de um presente, sem uma atitude de holding, pode funcionar para o paciente como se o analista não percebesse que aquilo foi criado só para ele. A forma acolhedora de receber esse presente torna aquele momento compartilhado e possibilita ao paciente creditar que é capaz de construir, de fazer, quando ainda não é capaz de sentir criatividade implícita no próprio ato de estar vivo, a criatividade relacionada com o ser.

Por vezes, a captação do paciente é tão profunda que ele nos traz algo de nosso gosto e que se encaixa num canto qualquer do consultório. O setting se torna, assim, compartilhado. Assim penso que deva ser um setting analítico, ao mesmo tempo estável, ao mesmo tempo transicional, podendo permanentemente – como a pessoa do terapeuta – se enriquecer e se transformar, inclusive através da participação do seu paciente.

A situação analítica como fonte de criatividade para o paciente foi talvez o último dos legados de Winnicott pelo qual ele mais se bateu:

“Se eu puder fornecer uma descrição correta de uma sessão, o leitor observará que durante longos períodos retenho interpretações e permaneço frequentemente em silêncio (...) Minha recompensa por esta retenção surge quando a própria paciente faz a interpretação, uma hora ou duas depois, talvez (...) Minha descrição equivale a um pedido a todo terapeuta para que permita a manifestação da capacidade que o paciente tem de brincar, isto é, de ser criativo no trabalho científico. A criatividade do paciente pode ser facilmente frustrada por um terapeuta que saiba demais. Naturalmente, não importa, na realidade, quanto o terapeuta saiba, desde que possa ocultar esse conhecimento ou abster-se de anunciar o que sabe” (“A Criatividade e suas Origens”).

 

REFERÊNCIAS

MELLO FILHO, Julio de. O ser e o viver: uma visão da obra de Winnicott. Porto Alegre: Artes Médicas,1989. P.70-74.