Vol. XVI: Vitrais 101 - mar 2023 

A Revista da ABRT Associação Brasileira Ramain-Thiers

ISSN 2317-0719

VITRAIS
Vol. XVI: Vitrais 101 - mar 2023

 

Editorial

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Literatura

Solange Thiers

 

Artigo

Júlio de Mello Filho

 

Reflexão

Mauro José Licheta

 

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Artigo

 

Brincar e Descobrir

 

Por: Júlio de Mello Filho

 

Júlio de Melo Filho: Médico. Psiquiatra.Psicanalista.

  

O uso dos objetos transicionais refere-se, na vida da criança ao aprender a brincar, a que Winnicott emprestou uma especial atenção, como nenhum outro analista jamais deu. Até então ele mostra que o brincar era utilizado, em psicanálise, desde Melanie Klein, apenas como forma de acesso ao mundo interior da criança, como preparo para a terapia e não como terapia em si. Winnicott nos propõe inverter os fatos. Devemos começar sempre pelo brincar, “pois o brincar é universal”. “É no brincar e somente no brincar que o indivíduo pode ser criativo. E é sendo criativo que encontra seu self.” E nos diz mesmo que “a psicanálise foi desenvolvida como forma altamente especializada de brincar”. Da erotização; ao contrário

O que interessa a Winnicott é o brincar verdadeiramente, que se basta a si mesmo e que prescinde até da erotização; ao contrário, quando a excitação física se torna muito evidente, a brincadeira acaba. Do brincar com a mãe (usar) através da alucinação, a criança passa pelo estágio dos fenômenos transicionais e chega a brincar realmente com alguém, ao brincar compartilhado, quando há superposição de duas áreas de jogo. Para Winnicott, a psicoterapia se efetua exatamente na superposição de duas áreas do brincar: a do paciente e a do terapeuta. “Quando o paciente não consegue brincar, é função do terapeuta trazê-lo para este estado, para que os dois possam brincar juntos” (...) “Interpretar quando o paciente não tem capacidade de brincar não é útil e causa confusão.” Assim, para Winnicott, o brincar é por si só terapêutico: “é umapsicoterapia de aplicação imediata e universal”. É, em si, excitante, não porque envolva instintos, porém pela magia que contém e pela intensidade da relação afetiva com quem brinca, incluindo o ódio, que pode apenas ficar expresso na área do simbolismo, na dramatização implícita no jogo. O brincar se dá no espaço potencial e “é sempre uma experiência criativa, na continuidade espaço-tempo, uma forma básica de viver”.

Arnold Modell, discorrendo sobre a significação do brincar para Winnicott, escreve: “A atenção é dada ao problema das realidades compartilhadas intersubjetivas, para as quais ele usa o conceito de brincar. Note-se o uso do verbo mais que o substantivo (...) é de considerável interesse que a linguagem, como é amiúde o caso, reconheça a verdade psicológica. A etimologia da palavrailusãopode ser buscada no verbo latino ludere (brincar). Brincar foi essencial para o caráter de Winnicott. Esta brincadeira de Winnicott está fora de consideração de sério / não é sério. Brincar lida com matérias essenciais; Winnicott acreditava que através do brincar se poderia aprender a experimentar e controlar a realidade dolorosa; a essência do brincar e a liberdade (grifo meu). A noção de jogo é, como Winnicott a usa, muito equivalente à criatividade em si mesma.”

No início do meu trabalho, influenciado por teorias que enfatizam sobremodo a agressividade e os processos defensivos do paciente, via em um cliente que ousava brincar comigo basicamente a defesa, a ironia, o contato negativo, expressões de uma atitude maníaca. À medida que foise modificando meu modo de encarrar o paciente, tornei-me capaz de fazer esta distinção entre o aparente brincar, que no fundo encara uma defesa maníaca, e o verdadeiro brincar, expressão da liberdade e do viver criativo.

Lembro-me em particular de um paciente que chamei de Manoel, que não sabia brincar. Na sua infância e adolescência, quando ele tentava participar dos jogos e brincadeiras com os irmãos ou vizinhos, sempre se sentia deixado de lado, ou era então ironizado, o goleiro frangueiro, o “Pelé” da turma. Por este motivodeixou de jogar futebol e passou a evitar reuniões sociais; um dos poucos prazeres da sua vida era frequentar o grupo de amigos, indivíduos solitários com os quais conseguia conversar por horas seguidas, geralmente sobre os mesmos assuntos. Para estes, Manoeltornou-se um contador de histórias, proezas e fantasias. Na sua análise, Manoel também me contava muitas histórias, por vezes as mesmas, durante um longo período. Se eu tentava abordá-lo, analisar a sua necessidade de fantasiar, ele se sentia humilhado, chamado de mentiroso, um “fora da realidade”. Aprendi então a ouví-lo, toda e qualquer história, fosse realidade ou fantasia, não importava a distinção, não era o essencial, pelo menos naquele momento de sua análise. Ele necessitava que eu fosse o que o ouvia, um modelo diferente da sua mãe, que não tinha tempo e nem paciência para escutá-lo. Deste modo, tornava-me o objeto transicional que Manoel necessitava naquele momento, e criava com ele uma espécie de jogo de contar e de ouvir, um brincar compartilhado, no qual, como nos jogos de criança, existia a regra de fazer de conta que tudo era verdade, era proibido denunciar ilusões e devaneios. Eu era, ao mesmo tempo, o pai real que praticamente nunca brincou com Manoel.

O tema do analistacomo objeto transicionalé outro importante legado que Winnicott nos deixou. Poder ser um objeto que facilite a fusão ou separação. Penso que aqui como em outras oportunidades, Winnicott inverte a receita clássica “não entrar no jogo do paciente”, para “entremos no jogo do paciente, com o nosso jogo, de um modo transicional” (aspas minhas). Assim, precisei de fato entrar no jogo do Manuel, no jogo da sua enfermidade, no controle, na rigidez, na obsessividade, na técnica do relato sem sentimentos, para ajudá-lo a construir uma forma melhor de jogar o jogo da vida.

Durante muito tempo Manoel mostrou-se formal diante de mim, quando não estava francamente amedrontado ou hostil. Entrementes, iniciou um relacionamento paralelo com o porteiro do edifício e com o secretário do consultório, pessoas humildes, com quem conversava sobre política, futebol, e mesmo fazia eventuais brincadeiras. Sua aproximação comigo exigia  o emprego de várias  técnicas dissociativas, como foi toda a sua vida, e eu sabia que não toleraria qualquer menção minha ao fato. Representou um grande passo em sua análise o dia em que eu pude, discretamente, comentar: “Com o Mário (secretário) você pode falar política, dar opiniões, bater um papo legal, ele é legal, não é durão como o Júlio”. Depois, muito paulatinamente, discutir as várias significações do relacionamento, sem ele se sentir invadido, controlado, ou recebendo pito.

Outro tipo de jogo que Manueldesenvolveu comigo se relacionava com seu interesse em partidas de futebol ou corridas de cavalo. Assim, ele me descrevia partidas várias de futebol e era necessário que eu também participasse como ouvinte e mesmo eventual torcedor, para que a interação pudesse funcionar. E, desse modo, em determinado momento, quando ele comentava sobre um “perna-de-pau”, por vezes fazia um silêncio e dizia: “Este é o Manoel, não é?” Durante muito tempo era absolutamente necessário que eu me abstivesse desse tipo de intervenção; só ele a poderia fazer.

Na parte final do período em que esteve em análise comigo, Manoel já se atrevia a realizar brincadeiras, fazer chistes ou comentar coisas que soube da minha pessoa. Também começou a frequentar uma casa de campo que possuía, como laser. Todavia, então, apesar de ser uma pessoa com aspectos de riqueza e sensibilidade, Manoel ainda não tinha conseguido iniciar uma vida de todo cultural.

O uso do humor e do lúdico pode facilitar nosso acesso a certos pacientes. Para alguns, que tendem a nos ver excessivamente severos, para outros que só conseguem encarar suas realidades existenciais como enormemente dramáticas, uma interpretação feita de modo descontraído, com um toque de humor, é, por si só, terapêutica. Com alguns pacientes tenho o hábito de dar “deveres de casa”. Por exemplo: pensar, refletir sobre um tema difícil ou novo, que ficou apenas parcialmente elaborado durante a sessão analítica.

Ou para o caso de pacientes em terapia de grupo: sugerir que aquele que tem uma dificuldade com o tema trazido numa sessão, ou outro que permaneceu em silêncio sobre esse tema, falem a este respeito na sessão seguinte. São formas que tenho de, brincando com um paciente, auxiliar na longa tarefa elaborativa da sua análise. O clima transicional criado entre mim e o paciente permite que ele receba a tarefa mais como brincar-sugerir do que como um deve-cumprir, possibilitando um clima mais analítico (elaborativo) do que psicoterapêutico (persuasivo). Deste modo, ao meu ver, o brincar, como outros recursos técnicos trazidos por Winnicott, amplia uma área da psicanálise, fazendo transitar por ela uma série de recursos de maior uso em ouras modalidades de psicoterapia. Aliás, a área de transicionalidade entre psicoterapia e psicanálise sempre foi um dos campos preferidos por Winnicott.

O analista precisa representar a realidade externa objetiva, mas ao mesmo tempo, ser um objeto subjetivo, a serviço da realidade interna do paciente – eis um dos muitos paradoxos apontados por Winnicott em relação ao nosso trabalho.  Assim sendo, é fundamental que nos deixemos usar pelos nossos pacientes, sem receio de perder nossa identidade profissional, grande temos que nos avassala. Principalmente se aderirmos a posturas muito rígidas, a ideologia psicanalíticas tão distantes, às vezes opostas, das reais necessidades do paciente. Necessidades de um ego em desenvolvimento, como dizia Winnicott, para distingui-las das reais necessidades do id, apenasessas enfatizadas até então, em psicanálise.

No seu afã de usar a mãe ou objeto transicional das mais variadas formas e numa multiplicidade de simbolismos, a criança pode se tornar cruel com o seu objeto, pela dificuldade de reconhecersua existência própria, peculiaridades e limitações. Principalmente se está na fase descrita por Winnicott como de pré-preocupação com o objeto, isto é, se ainda não atingiu em seu desenvolvimento a posição depressiva. Do mesmo modo, o paciente pode exigir respostas inadequadas, masoquistas, ou perversas do terapeuta.

Como podemos constatar, entre cada paciente e o terapeuta cria-se um campo, uma área de experimentação, um espaço potencial onde se vai desenvolver a interação-terapia. Esta troca se dá basicamente no setting, porém muitas vezes extrapola o setting: é preciso haver espaço para uma comunicação telefônica entre paciente e analista. Esta elasticidade do setting reporta-nos novamente ao problema do seu manejo. No caso de Manoel, foi muito importante ele se relacionar com o secretário do consultório e com o porteiro do edifício. Representavam a relação com uma babá, a relação com os amigos, a necessidade do uso de suas costumeiras técnicas de dissociações no relacionamento comigo. Mas, acima de tudo, a perspectiva de usar um setting transicional, o que também acontecia quando vinha para as sessões muito antes da hora da consulta e ficava passeando e divagando pelas adjacências.

Obviamente, há certos casos - oualguns casos em certas fases – em que não há condições de usar o lúdico, o humor, ou mesmo em que o brincar é contraindicado. Pacientes esquizóides, narcísicos, depressivos, com um self  muito frágil, muitas vezes se sentem feridos em sua autoestima ante qualquer manifestação de humor de nossa parte.  É tudo uma questão de timing e empatia. Que avanço formidável será, todavia, para um paciente deste tipo, poder se envolver em um momento lúdico com o terapeuta?

 

Referências

MELLO FILHO, Júlio de.  O ser e o viver: uma visão da obra de Winnicott. Porto Alegre: Artes Médicas, 1989. P. 60.