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SOCIOPSICOMOTRICIDADE RAMAIN-THIERS

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CIÊNCIA 2

 

Entre o Desejo e o Ato

LEILA VASCONCELOS

Psicóloga, Sócio-Terapeuta Thiers, Mestre em Psicologia Cognitiva (PE)

Texto apresentado no I Seminário de Psicomotricidade do Nordeste, 1999

 

" - Gato Careteiro (Cheshine)... - pediu Alice -, quer fazer o favor de me dizer qual é o caminho que eu devo tomar?

- Isso depende muito do lugar para onde você quer ir – disse o gato.

- Não me interessa muito para onde... disse Alice.

- Não tem importância então o caminho que você tomar – disse o gato.

- ... contanto que eu chegue a algum lugar – acrescentou Alice como  explicação.

- Ah, disso pode ter certeza – disse o gato – desde que caminhe bastante."

 

Carrol, Lewis. Alice no pais das maravilhas

 

Alice não consegue escolher o lugar para onde ir.

Como é possível que isto aconteça? Como posso viver fora de sintonia comigo mesmo ou com o meu desejo? Como posso tornar-me "alheio" ao percurso da minha vida?

O tema do nosso Seminário é o conhecimento, mais precisamente o autoconhecimento, capaz de engendrar reconhecimento, possibilidades e apropriação. E para tanto, precisamos "encontrar" o caminho que nos conduz ao reino da realidade, suprimindo a alienação, enquanto forma de desatender a realidade mais própria. Necessitamos passar da ação desejosa à ação desejante (o ato), passagem que começa quando nos tornamos aptos a interpretar, por nós mesmos, o sentido dos nossos desejos, suas causas e seus efeitos, ou seja, quando nos apropriamos da nossa vida.

A realidade de que se trata aqui é a realidade humana, produto da contínua negociação entre a realidade psíquica e as imposições da realidade externa. No entendimento de alguns psicanalistas, as deformações produzidas por ação do desejo, embora variem em qualidade e grau, não são próprias desta ou daquela patologia, mais próprias da existência do desejo e do recalque, o que significa próprias do humano.

"Todo sujeito é sujeito de um desejo."

"Todo sujeito é sujeito porque é desejante."

Relação imprescindível, já que sujeito, realidade e desejo nascem, segundo a psicanálise, a partir do mesmo evento: o fracasso do princípio do prazer, primeira experiência de corte ante a necessidade e a imediata satisfação; não se pode falar em desejo diante do imediatismo entre a necessidade e a satisfação alucinatória. A decepção com a satisfação alucinatória obriga à introdução da realidade para o psiquismo.

É com a introdução do "Princípio de Realidade", como afirma Maria Rita Kehl, que o sujeito desenvolve consciência, atenção, memória, discernimento, pensamento e ação. Ao mesmo tempo são esses recursos psíquicos que criam a realidade na qual este indivíduo particular irá viver, realidade que não é, simplesmente, um dado exterior ao psiquismo e imposto em bloco a ele, mas re-criação permanente do sujeito a partir de cada uma de suas intervenções concretas e sobretudo simbólicas e simbolizatórias. Sendo essas representações dos objetos da realidade, oriundas de re-criação citada acima e permeadas de "ilusões", um ponto de apoio do sujeito para falar do desejo.

Mas, o que é o desejo?

Encontramos, na origem etimológica da palavra Desejo, uma correlação interessante e propícia para o enlace pretendido entre o Desejo e o Ato.

"A origem da palavra desejo é bela. Deriva-se do verbo Desidero que, por sua vez, deriva-se do substantivo sidus (mais usado no plural – sidera), significando a figura formada por um conjunto de estrelas, isto é, as constelações. Sidera é empregado para indicar a influência dos astros sobre o destino humano. De sidera, vem considerare, examinar com cuidado, respeito e veneração e desiderare, cessar de olhar os astros. Pelo corpo astral, nosso destino está inscrito e escrito nas estrelas e considerare é consultar o alto para nele encontrar o sentido e guia seguro de nossas vidas. Desiderare, ao contrário, é estar despojado dessa referência, abandonar o alto. Cessando de olhar para os astros, desiderium é a decisão de tomar nosso destino em nossas próprias mãos, e o desejo chama-se, então, vontade consciente, nascida da deliberação".

Deixando de ver os astros, optamos por buscar nossas decisões, assumir nossa condição quer de sujeitos desejantes, quer de pessoas capazes de, diante da autoconsciência, conhecer as possibilidades, situar-se diante de si e dos outros, traçar nosso destino.

Consciência é saber sobre algo. Mas, saber não é recolher dados e informações; o conhecimento é conceitual e operatório, é uma forma de organizar a realidade interna e externa. A consciência é um fenômeno vivencial e afetivo. Ser consciente é saber localizar-se na situação, em toda a sua gama de relações e inter-relações, articulando nossa conduta segundo exigências sociais e da práxis. Desenvolver a autoconsciência é sair, progressivamente, da ignorância, da crença ingênua ou da alienação. É estar atento.

Estar atento diz respeito ao enxergar e ver. Não é qualquer olhar que pode atender a essa exigência. Precisamos de um olhar educado, capaz de ver todas as coisas, tanto as que se oferecem imediatamente à percepção como aquelas que escapam à percepção imediata, um olhar, portanto, operante.

Este desejo de saber voltado para o próprio psiquismo nos remete à análise, à psicoterapia. Na verdade, a grande maioria das pessoas que procuram acompanhamento psicoterápico sofre por não saber lidar com suas emoções, sentimentos e história pessoal, por não "saber sobre sua própria vida". Por isso, vivem presas à tramas afetivas, a certa alienação com relação a seus motivos e aos seus desejos (alienação da situação que desenha sua realidade), à vivências passadas, que, de certa forma, restringem a liberdade, impedindo que usufruam de boa parte de sua potencialidade e capacidade criativa.

Desenvolver autoconsciência não é liberar e/ou lembrar experiências recalcadas.

"É preciso despedir-se do passado e não recalcá-lo."

"E para despedir-se é preciso compreendê-lo."

Posso querer me distanciar do meu passado, negando-o, ignorando-o, tentando esquecê-lo, mas esta tentativa se mostrará inoperante, gerando conflitos e intentos malogrados. É preciso apreendê-lo, identificando a dimensão do mesmo em relação as nossas atuações frente a demanda do presente, incluindo-se aí, as nossas repetições – "a nossa invariável maneira de agir e reagir".

"Ressurrección de realidades enterradas, reaparición de lo olvidado y lo reprimido que, como otras veces em la história, puede desembocar en una regeneración. Las vueltas al origen son casi siempre revueltas: renovaciones, renascimientos."

Portanto, nesse caso, precisamente, a psicoterapia poderia designar um meio de acesso ao mundo próprio do indivíduo, investigando o que na vida se encontra doente, bloqueado, necessitando, por isso, desenvolvimento. A vida doente é a vida bloqueada em termos de funcionamento, presa por valores que intoxicam seus recursos internos, obstruem suas possibilidades, empobrecem sua capacidade criativa, prescindindo, por isso, des-envolvimento, des-enredamento, diferenciação para recuperar sua potência criadora e adequar-se melhor à complexidade móvel do viver.

"A psicoterapia cuidará, pois, do des-envolvimento da vida no desabrochar de suas formas."

Ainda citando Maria Rita Kehl, as capacidades cognitivas representam um enorme ganho de liberdade para o sujeito, que deixa de estar condenado ao recalque como único recurso para evitar o desprazer. Memória, atenção, discernimento e o grande herdeiro da atividade alucinatória, que é o pensamento, permitem que o psiquismo não tenha mais de, simplesmente, recalcar toda a representação que é fonte de desprazer. Podendo, assim, distinguir em que circunstâncias uma representação pode trazer prazer, desprazer ou ser neutra nessa questão. Interferir nessas circunstâncias, reinterpretá-las, relativizá-las ou até mesmo alterá-las concretamente, quando possível, é interferir no código, re-simbolizar o real.

O saber e o posicionar-se não são assim separáveis. O saber, enquanto conhecimento, é o saber de o estar sendo, do estar se dizendo. Por isso, o dizer-se pode ser considerado, também, o objeto do processo psicoterapêutico propriamente dito. No exercício do sentir-pensar-verbalizar, proporcionado, principalmente, através da psicoterapia, "encontramos o real". O encontrar-se, o posicionar-se, diz respeito à capacidade de habitar seu mundo pessoal.

Na sociopsicomotricidade Ramain–Thiers, por ocasião da verbalização, ocorre a "fala autêntica", quando a pessoa, diante da psicomotricidade diferenciada, se surpreende e formula seus pensamentos, sentimentos ou inquietações pela primeira vez. Neste caso a pessoa está dando forma ao que ela está sendo e sendo o que fala. Sua fala é nova, produto dos pensamentos que está tendo no ato de falar.

"A fala enuncia o encontro."

O encontro é o descobrimento da realidade. A fala do indivíduo exprime seu espaço privado, o espaço interno da consciência, constantemente criado, modificado e reconstruído. Neste contexto, Merleau-Ponty faz uma identificação entre a fala e o pensamento: a fala autêntica é o pensamento em ato, ou falar é pensar, mesmo quando falo sentimento. Falar é decidir, é criar.

Compreender o desejo e sua origem, eis a ação; sendo capaz de reflexão, o indivíduo torna-se capaz de interpretar seus afetos. Conhecer, exercer a razão, é agir. E essa ação é o mais forte dos afetos ativos.

Freud, falando sobre a força do desejo na Quinta Lição de Psicanálise, disse... "a nossa experiência nos ensinou com toda segurança que o poder mental e somático de um desejo, desde que se baldou a respectiva repressão, se manifesta com muito mais força quando inconsciente do que quando consciente; indo para a consciência, só se pode enfraquecer. O desejo inconsciente escapa a qualquer influência, é independente das tendências contrárias, ao passo que o consciente é atalhado por tudo quando, igualmente consciente, se lhe opuser. O tratamento psicanalítico coloca-se assim como o melhor substituto da repressão fracassada, justamente em prol das aspirações mais altas e valiosas da civilização."

"Ninguém pode desejar ser feliz, agir bem e viver bem que não deseje, ao mesmo tempo, ser, agir, e viver, isto é, existir em ato."

Há, entretanto, uma distância a considerar, entre a fantasia de onipotência , que pretende criar um mundo próprio à sua inteira satisfação, e o poder de modificação do Eu sobre a realidade, sinal de potência do ego. Poder que se manifesta através da atitude vital, que, em última instância, diz respeito à capacidade do indivíduo, em função da intensidade em que as circunstâncias da vida se constituem uma ameaça à autonomia e liberdade, de perceber a demanda, integrar os diversos fatos e responder de forma satisfatória, interferindo nessas circunstâncias, alterando-as, reinterpretando-as, modificando-as, quando possível, ressignificando-as.

A Sociopsicomotricidade Ramain-Thiers, uma intervenção terapêutica que engloba, enquanto "ato terapêutico", o trabalho corporal, a psicomotricidade diferenciada, a verbalização e a inserção social, se apresenta como uma terapia capaz de propiciar essa resposta referida acima, a adequação emocional, esse "re-simbolizar o real", fruto do imediatamente vivido no "setting", produto de vivências reveladoras e mobilizadoras, que conduzem ao autoconhecimento. O cliente, ao se deparar com o seu "trabalho terapêutico", consegue exercer o olhar atento, consegue olhar e ver, consegue ver e compreender, adquirir, por fim, o conhecimento. E, assim, destituído da alienação, se apropriar de sua vida, viver suas possibilidades, traçar um percurso desenhado a partir de sua realidade, da ligação consigo mesmo e com o mundo, sendo senhor do seu próprio mundo.

 

Bibliografia

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Thiers, S., A Sociopsicomotricidade Ramain-Thiers, Rio de Janeiro, RJ, Casa do Psicólogo, 1998

       

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